Era fevereiro de 2000. Dias difíceis aqueles, em que ela quase diariamente sentia algum tipo de angústia, sabe-se lá por quê (nem ela mesma sabia).
Naquele dia, como em todos os outros, almoçou e foi à escola. Subiu no ônibus e sentou ao lado de um casal de idade madura. Segundos depois, deparou-se com uma discussão do casal. Não demorou muito para que as agressões verbais que o homem dirigia à sua mulher se transformassem em agressões físicas. O homem se levantou e começou a batê-la violentamente.
Assustada com abriga do casal, ela se levantou e sentou num lugar bem distante dos dois. Mas não conseguia se desligar daquilo. Queria atirar uma pedra no homem. Queria pedir que a mulher reagisse, que não deixasse ele fazer aquilo, que nunca o perdoasse.
Depois de muita pancada, o motorista parou o ônibus e ameaçou expulsar os dois ou parar numa delegacia se o homem não parasse de espancar a mulher. O casal se acalmou, mas ela, sentada naquele cantinho distante dos dois e tantando esquecer o que vira, chorava discretamente. Desejava que a escola chegasse logo e ela não precisasse mais ficar no mesmo ônibus que aquele monstro.
Entrou na sala de aula, atirou os livros sobre a carteira, dirigiu-se a um banco no corredor e pôs-se a chorar. Minutos depois, algumas meninas das mesma turma se aproximaram. Perguntavam-lhe o que tinha acontecido, por que ela chorava tanto. Mas ela não conseguia responder, apenas chorava.
Tiveram uma idéia. Alguém conseguiria fazê-la falar: era a psicóloga do Serviço de Orientação Educacional, que tinha uma salinha confortável, cheia de almofadas e incensos, onde aplicava testes vocacionais e conversava com os alunos. Depois de muito tempo deitada naquelas almofadinhas, perguntaram-lhe novamente o que tinha ocorrido:
- No ônibus tinha um cacsal brigando.
- E?
- O homem bateu na mulher. Segurou-a pelos cabelos e jogou sua cabeça contra o vidro.
- Aconteceu algo com a mulher?
- Claro: a mulher foi espancada em público. Aquilo deve ter doído muito. O homem poderia tê-la matado.
Mantiveram-se em silêncio. Alguém porguntou:
- Ela era conhecida sua? Parente?
- Não.
Naquele momento, a menina se sentiu ainda pior. Ela poderia quase que ler o pensamento das outras meninas. "Uma garota louca, que se desespera ao ver uma ilustre desconhecida apanhar." Ou como costumavam dizer à mãe dela quando ela era criança: "Ela é nervosa".
Mas a tristeza dela pouco tinha a ver com o juízo de valor a seu respeito. Era a constatação do que para ela era terrível: a banalização da desvantagem feminina, a falta de solidariedade humana - o poder de as coisas só atingirem as pessoas quando acontecem com elas ou diretamente ligadas às pessoas de quem gostam.
Voltou para a sala de aula, mas tinha recebido a grande lição daquele dia antes mesmo de a aula começar. Aprendera que ser mulher era difícil em todos os aspectos. E que mais difícil ainda era ser humano. Em todos os sentidos que essa palavra contempla.